Sobre o valor dos sermões de Calvino

Por cerca de quatrocentos anos os escritos de João Calvino têm sido acarinhados pela igreja. Os que têm familiaridade com seus labores sabem que ele não é o homem de apenas um livro, As Institutas, mas também dos comentários, cartas e sermões.

Primeiro e acima de tudo, Calvino foi um clérigo. Sua visão da tarefa do clérigo, de sua própria tarefa, era apresentar ao povo de Deus todo o conselho de Deus. Mesmo que fosse chamado ao dever especial de professor e, assim, à produção das Institutas e dos Comentários, não obstante um teólogo não leva a bom termo suas responsabilidades quando isolado da igreja. Esse tipo de desligamento era impensável. Com toda diligência e consciência, Calvino trabalhava na sala do consistório e do púlpito.

Ainda quando os sermões de Calvino formassem apenas um componente do ministério de sua vida, para ele esta era a parte mais importante desse ministério. Seus sermões eram enunciados com as mesmas qualidades extraordinárias de seus outros empreendimentos. Diferentemente das Institutas e Comentários, que se destinavam a um público mais amplo, os sermões de Calvino eram enunciados ao povo que se postava diante dele. Ele sabia que muitos dos seus sermões, pregados sem notas, estavam sendo transcritos e impressos, mas ainda assim eram dirigidos aos seus contemporâneos. Este sabor “contemporâneo” adiciona aos sermões duas qualidades distintas: demonstra como um dos maiores teólogos de todos os tempos “pregava” sua teologia aos leigos e fornece um vislumbre de como os cristãos no meio da Reforma empenhavam-se em questões que transcendem, respectivamente, tempo e cultura.

Sobre o contexto dos sermões de Calvino

Estes sermões foram enunciados num contexto histórico muito diferente do nosso. A Europa do século XVI vivia um ambiente de tumulto religioso com a resultante perseguição contra os protestantes. Essa perseguição não seria esquecida quando se lesse Calvino, pois estava constantemente na mente do pregador e de seus ouvintes. A igreja em Genebra enviara muitos missionários pela Europa, e cerca de um terço deles era morto em razão de sua confissão de Cristo. Assim, a polêmica de Calvino contra o “papado” é mais aguda do que se tem ouvido.

Igualmente, Calvino pregava a um público diferente de qualquer outro que encontramos hoje. A pequena cidade de Genebra, como uma cidade e como indivíduos no seio dessa cidade, se devotara a seguir a Cristo, e assim cada cidadão era membro da igreja. Esta situação de membresia da igreja e da cidade apresentava problemas e oportunidades para os pastores. A congregação de Calvino consistia em pessoas que seguiam o Senhor com vários graus de intensidade. Muito embora diferentes níveis de obrigação pessoal ainda sejam a norma em qualquer igreja, poucos oradores ingleses frequentavam a mesma igreja que todos os seus vizinhos.

Finalmente, mesmo reconhecendo que estes sermões são antigos e acomodados num contexto histórico particular, é impressionante o quanto continuam novos. Muitos dos sermões de Calvino poderiam ser proclamados hoje do púlpito com poucas mudanças e muito proveito.

Sobre o tema deste livro

O tema desta coleção de sermões diz respeito à obra salvadora de Cristo. Embora seja difícil de sumariar a mensagem de Calvino numa ou duas sentenças, é evidente que ele queria que seus ouvintes entendessem e abraçassem quatro ou cinco pontos fundamentais. Reiteradamente, Calvino proclamava que o fundamento para a obra de Cristo era o profundo amor de Deus; que o pecado humano é detestável e deve causar profundo opróbrio; que a salvação é tão preciosa que os crentes devem regozijar-se com a herança que os aguarda; e que os cristãos podem nutrir confiança na obra realizada por Cristo.

Sobre o estilo destes sermões

O estilo da pregação de Calvino, nestes sermões, é semelhante ao dos outros. Há certos elementos que entremeiam todos os sermões de Calvino. Primeiro, temos o consistente frescor de suas traduções da Escritura. Sua habilidade com os idiomas originais lhe propiciava oportunidade de ver nuances e expressões que só pode advir dessa habilidade. Segundo, Calvino habitualmente parafraseava em suas próprias palavras o que cria ser o significado do texto. Uma vez e outra lemos: “É como se João (ou Paulo, ou Lucas) estivesse dizendo…”. Terceiro, o significado do texto era sempre aplicado à vida do crente. Para Calvino, o significado do texto tinha sempre implicações para as vidas do pregador e do auditório. Finalmente, os sermões de Calvino eram compreensíveis para o seu auditório. Aqui, a pregação não era nenhuma torre de marfim! Havia uma plenitude de exposição, porém nunca à custa da compreensibilidade. Tampouco Calvino temia expressões coloquiais que fossem difíceis para o tradutor, mas certamente eram proveitosas para o ouvinte! Sem dúvidas, o estilo de Calvino poderia ser instrutivo para a pregação contemporânea.

Sobre o conteúdo destes sermões

Obviamente, estes sermões tratam da doutrina de Cristo explanada por Calvino. Entretanto, a pregação de Calvino sobre estes grandes textos concernentes a Cristo não se limitava à cristologia. Para Calvino, qualquer doutrina era sempre vista em conexão com outras, e esse é o caso aqui.

O estudo da cristologia não estará completo se excluirmos a antropologia. O reconhecimento do pecado e depravação humana é por toda parte evidente nos sermões que jazem diante de nós. Calvino via esse pecado e depravação em sua coloração mais escura. Ninguém jamais o acusará de abrandar o pecado! Igualmente, a grande salvação obtida por Cristo tinha para Calvino fortes implicações éticas. Para Calvino, crer em Cristo significava viver para Cristo. A obra de Cristo aplicada à vida do crente, segundo Calvino, deve impactar suas atitudes para com a autogratificação, sua visão do mundo e até mesmo a maneira como adora.

Finalmente, estes sermões ensinaram a seus ouvintes e ensinam a seus leitores muito da autoridade da Escritura, a interpretação da Escritura e as implicações dessa interpretação na vida e no pensamento dos crentes. “Pois o Espírito Santo falou pela boca de Lucas”, disse Calvino; e, mais adiante: “…pois a intenção de Lucas, ou, antes, do Espírito Santo, que falou por sua boca, não é simplesmente escrever-nos uma história do que aconteceu”. Quando se achava no texto uma dificuldade, Calvino lembrava a seus leitores que seguissem “o sentido natural”. E, quando comparava a beleza da Escritura com a cogitação dos filósofos, seus leitores eram lembrados de que nada é superior ao testemunho da Escritura.

Deveras é para mim um prazer introduzir estes sermões que foram impressos. O tradutor foi fiel ao texto e suas anotações são muitíssimo úteis. Que a leitura e a meditação sobre eles ajudem a igreja a entender a pessoa e a obra do Salvador e a conhecê-lo melhor, a fim de segui-lo mais de perto.

Dr. Richard C. Gamble
Professor de Teologia Sistemática,
Seminário Teológico Reformado,
Orlando, EUA.